ROTTWEILER COM CARA DE PUG? QUAL É O LIMITE DESTA DISTORÇÃO?

  

A natureza não faria isto!!!  Através da chamada “seleção natural”, decorrente de mutações genéticas aleatórias, as espécies vêm se aperfeiçoando, pois aqueles animais que se apresentam inaptos para a vida natural não sobrevivem e, por conseguinte, não transmitem, para eventuais descendentes, as anomalias que herdaram.

Já os seres humanos, na criação de cães, realizam uma verdadeira seleção antinatural, fazendo-os gerar filhotes não mais funcionais e portadores de graves desproporções morfológicas e de temperamento. Isto ocorre, também, na criação de outros animais, onde interfere a vontade humana.

Não criticarei aqui aquela intervenção do criador ou criadora que evita a morte do filhote que se apresenta fisicamente fraco ou defeituoso, quase sempre rejeitado pela mãe canina. Naturalmente ele não sobreviveria e o criador, tomado pelos nossos melhores valores humanos, deve fazer tudo o que for possível para salvar também esta vida, ainda que precária.

Entretanto, o criador consciente deverá, no futuro breve, castrar o animal a fim de impedir que, geneticamente, aquela debilidade física seja transmitida a prováveis proles, contaminando a raça canina de deficiências de saúde ou de estrutura física.

Até aqui, tudo se passa dentro das “regras da natureza” ou do comportamento que se espera do ser humano responsável e ético.  A nossa preocupação, que não é de agora, está com as deletérias distorções de alguns criadores das diversas raças caninas, sempre procurando ampliar ou exagerar as características próprias das raças caninas, descritas nos respectivos padrões oficiais, homologados pelas entidades representativas daquele universo animal (CBKC e FCI), seja em nível nacional, seja em nível mundial.

Este problema tem ocorrido em várias raças, sendo o Sharpei um exemplo sempre lembrado. De tantas dobras na sua pele, o cão passou a ter vários e graves problemas de saúde. Mudou-se o padrão rácico, proibindo tal exagero, e a raça voltou ao seu “curso normal”. Até mesmo o padrão do gigante dogue alemão precisou ser alterado para estipular uma altura máxima, pois os criadores estavam buscando dogues totalmente “desajeitados”, com vários danos à sua movimentação e desenvolvimento ósseo. Entretanto, aqui, nossa preocupação é com a lamentável descaracterização da raça rottweiler.

Nesta raça, que ora estamos estudando e criando, existem diversas outras distorções morfológicas, nada obstante, vamos nos ater, principalmente, a reflexões críticas sobre as recentes distorções na sua cabeça. Aliás, como o corpo do animal é um verdadeiro sistema físico, a alteração exagerada da cabeça do rottweiler pode afetar o equilíbrio anatômico do animal, pois descoloca o centro de gravidade para a sua parte frontal, pressionando seus membros anteriores, exigindo pescoço mais curto e grosso, e dificultando a sua movimentação.

Importante notar que a movimentação do cão que decorre de propulsão traseira, que pode perder uma certa aderência ao solo pelo desequilíbrio do peso do rottweiler, dentre outros problemas que não cabem ser aqui estudados.

Assim, uma coisa precisa ficar assente para os novos criadores e para o público leigo: pelo índice cefálico, pode-se afirmar que a cabeça do rottweiler não é braquicéfala. Em termos vulgares: a largura do crânio deve ser bem menor do que a extensão da cabeça (do osso occipital à trufa do cão).

Notem que padrão rácico foi alterado, em 2018, para dispor expressamente que o crânio deve ser apenas “relativamente” largo e que o focinho não pode ser menor do que 40% do comprimento de toda a cabeça. Vale a pena repetir:  isto está expresso no padrão oficial da raça rottweiler!!!

Lamentavelmente, alguns criadores de rottweilers, no Brasil e também em escala mundial, estão criando verdadeiros monstros caninos e deles fazendo grande publicidade perante o publico leigo consumidor (interesses financeiros na venda de filhotes). Cabeças sem tipicidade, largas, com rugas, focinho curto e arrebitado, tudo proibido expressamente pelo padrão oficial da raça.

Ademais, estão sendo valorados como excelentes alguns rottweilers extremamente molossóides, totalmente inaptos para as funções para as quais a raça foi criada. Entretanto, no padrão oficial da raça está escrito como falta grave: “tipo muito molossóide e aparência geral pesada”. Tenho dito que corremos o risco de, no futuro, estarmos criando uma outra raça canina com o nome de rottweiler ...

Sobre estas questões, vejam o que disse o juiz TAMÁS JAKKEL, atual presidente da FCI, nossa entidade mundial máxima. Ele alerta, de forma assertiva e veemente, para a maléfica e atual tendência de descaracterização da raça rottweiler. Publiquei esta relevante manifestação em meu blogue: caniljardimsilva.blogspot.com

Estas distorções, estas descaracterizações da raça rottweiler têm sido estimuladas por algumas decisões provenientes das exposições de beleza, sejam exposições gerais, sejam exposições chamadas de especializadas.

Juízes de cães, por motivos vários, por vezes, ainda que poucas, acabam premiando cães com estrutura claramente fora do padrão da raça: cabeças atípicas, pernas curtas, frentes muito largas, arqueamento de costelas exagerados e muito atarracados, etc.  Em estudo recente, publicado em meu blogue, trato desta questão com alguma profundidade (caniljardimsilva.blogspot.com).

Constatada esta triste realidade, com a qual não conseguimos nos conformar, fica uma dúvida atroz, que faz parte do título deste singelo texto: qual é o limite destas distorções? Será um rottweiler com a cara de Pug?

Em outros textos, que fiz constar da segunda edição do meu livro “Rottweiler, estudos sobre o padrão oficial”, publicado pela Editora Lumen Juris, coloco a tipicidade com categoria relevante para a interpretação sistemática dos padrões das raças caninas. Digo que falta morfológica ou até um conjunto de menores faltas podem levar à própria desqualificação do cão, o qual deixa de possuir uma das várias características essenciais de sua pretendida raça.

Assim, por exemplo, um cão que tenha a cabeça de um fila brasileiro ou a cara de um Pug nunca pode ser considerado um rottweiler, embora possua as outras características próprias desta raça. Por isso, o padrão diz ser desqualificante os cães que “não apresentam as cores preto com marcações castanhas (tan), típicas do rottweiler”.

Ora, se o padrão é tão severo que as características visuais do rottweiler, que dizer quando os criadores criam distorções capazes de afetar a saúde e o bem estar do animal? Não foi por outro motivo que, de forma cogente, dispõe expressamente o padrão oficial da nossa raça: “Qualquer desvio deste padrão deve ser considerado como falta e penalizado na exata proporção de sua gravidade e SEUS EFEITOS NA SAÚDE E BEM-ESTAR DO CÃO”.

Não resta dúvida de que um cão com focinho exageradamente curto e arrebitado (cara de Pug) tem grande dificuldade respiratória, mormente quando se trata de uma raça de guarda e trabalho. Isto é de todos sabido e não carece de maiores explicações. Dependendo desta redução da cana nasal, o animal não deve ser considerado como sendo um rottweiler. Saúde e bem-estar do animal não estão sendo considerados por alguns criadores gananciosos, voltados para a mercancia animal (criação orientada pelo mercado!!!).

Julgo ser preciso estabelecer um paradeiro a estas distorções, que estão descaracterizando a raça rottweiler, que estão fazendo mal à saúde e ao bem estar dos nossos cães. O Conselho Nacional da Raça, os clubes especializados e os criadores mais representativos e conceituados devem se colocar em campo e esclarecer a todos e todas que existe um padrão oficial da raça e que não se pode criar segundo o gosto pessoal de cada um, sob pena de se acabar com a raça. Sem tipicidade, não há raça canina (repito sempre).

Acho que teremos que, no futuro breve, criar regras jurídicas específicas para proibir estas distorções, vale dizer, leis que limitem os poderes dos criadores, acasalando e criando animais defeituosos, verdadeiros “aleijões”!!!

Quem sabe alguns juízes de direito venham a condenar alguém que faça gerar e crie estes monstros, pela prática de maus tratos aos animais, crime já previsto na lei do meio ambiente (com o objetivo de melhor coibir os maus-tratos a cães e gatos, pois publicada a lei n.14.064/20, que alterou a lei n.9065/98). Fiquem atentos, pois, se não cabe analogia no Direito Penal, sempre caberá a chamada interpretação extensiva. Nossos amigos rottweilers precisam ser respeitados; o trabalho de séculos dos biólogos, veterinários e criadores da raça precisa ser respeitado!!!

 

Afranio Silva Jardim, criador de cães há cerca de 24 anos e autor de livro sobre o padrão da raça rottweiler. Procurador de Justiça (aposentado) e Professor de Direito da Uerj (aposentado)


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